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terça-feira, 19 de outubro de 2010

A infiltração policial

Numa ação inusual, cerca de 30 agentes da Polícia Civil fecharam o cruzamento das ruas onde funcionam duas tradicionais universidades paulistanas, a Presbiteriana Mackenzie e a de Ciências Médicas da Santa Casa. Pelo menos dez pessoas foram detidas por porte de drogas. A batida policial seria corriqueira num bairro da periferia de São Paulo ou na vizinhança de alguma favela. Ali, onde estuda uma parte da elite da cidade, não. Embora jovens comprassem e até consumissem drogas descaradamente em alguns dos bares da região, eles só foram detidos graças a uma investigação de 40 dias que contou com policiais civis disfarçados de universitários. Eles frequentaram barzinhos, se aproximaram dos alunos e conquistaram a confiança dos traficantes. Até que deram voz de prisão aos suspeitos.

Dos dez detidos, cinco foram presos e três respondem a inquérito. É pouco, tamanho o investimento feito na operação. Esse resultado mostra quão complicado é o novo desafio da polícia: combater os traficantes de classe média. Camuflados por hábitos de vida e de consumo que não os associam à marginalidade, esses novos criminosos conseguem manter-se disfarçados, sem levantar suspeitas. Seletivos e discretos, os traficantes de classe média agem por conta própria, em geral vendendo em pequena escala para amigos e conhecidos. Seus clientes são principalmente estudantes universitários, que usam drogas em festas raves e baladas, onde a ação policial se dá de forma limitada.

“O tráfico vai se pulverizar aos poucos, sem bocas ou pontos de venda na favela”, diz a antropóloga Carolina Grillo, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É assim nas grandes cidades do mundo e tende a ser assim no Brasil. A violência dos morros e o risco de serem presos afastam os compradores dos pontos de venda tradicionais, abrindo espaço para o crescimento do tráfico de classe média.

Daí a importância de táticas incomuns para conseguir detê-los. A principal delas é o agente infiltrado (leia o depoimento de um deles NO FINAL). “A infiltração permite identificar quando e como vendem, mas com um objetivo principal: subir os degraus e chegar aos tubarões”, diz o delegado Marco Antonio Pereira Novaes, diretor do Departamento de Investigações sobre Narcóticos de São Paulo.

Nos Estados Unidos dos anos 1970, o FBI se valeu desse recurso com sucesso para desvendar o funcionamento das famílias mafiosas que dominavam o país. A história de um deles, que passou seis anos convivendo com a Máfia, virou filme, intitulado com o codinome usado durante a operação: Donnie Brasco.

No Brasil, uma operação assim seria impossível. “A legislação em vigor não aborda o assunto adequadamente”, diz a juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, titular da 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. “Ela não dá segurança quanto aos efeitos e quanto aos próprios mecanismos de ação.” A legislação brasileira dedica seis linhas à infiltração, limitando-se a autorizá-la, de acordo com a necessidade da investigação, se feita por agentes ou policiais. Alguns países europeus, como Alemanha e Espanha, detalham os casos em que a infiltração é permitida e delimitam com clareza as circunstâncias da ação. “Aqui é difícil infiltrar por muito tempo, porque para o juiz autorizar uma identidade falsa ao policial é preciso se cercar de cuidados”, afirma o promotor Everton Zanella, do Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo.

O paradoxo da infiltração é que, para conter o avanço da criminalidade, o agente tem de participar da conduta criminosa. A começar pela identidade do policial, que tem de receber um RG falso para construir sua história simulada. Em seguida, uma inserção falsa no banco de dados para criar uma identidade criminosa que sustente o personagem criado. “E se o agente tiver de cometer crimes leves, participar de infrações para ser aceito? Como fica a situação do policial depois?”, diz Zanella. “Nada disso está previsto em lei, e tem de ser levado em conta pelo juiz.”

Em 2005, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul descobriu uma organização criminosa que lucrava quase R$ 4 milhões por ano praticando estelionato e lavagem de dinheiro em vários Estados. A Promotoria Criminal Especializada de Porto Alegre entrou com um pedido em Varas Criminais das capitais de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul para usar um agente infiltrado. Só conseguiu autorização em Porto Alegre, depois de dois meses. A Justiça gaúcha autorizou a polícia a criar uma empresa de consultoria de fachada para empregar o policial com identidade falsa de consultor. Dentro da empresa investigada, e autorizado pela Justiça, ele acompanhou o cotidiano da organização, identificou os funcionários, gerentes e diretores envolvidos e instalou aparelhos de captação de som ambiente e interceptação telefônica. Em seis meses o agente coletou informações que levaram cinco envolvidos à condenação.

Inspetora de polícia, a hoje deputada federal Marina Magessi comandou em 2006 a Operação Chave de Ouro, que prendeu 17 traficantes que vendiam drogas sintéticas no Rio. Marina selecionou três detetives recém-saídos da academia de polícia, jovens e bonitos. Eles passaram a frequentar festas rave para fazer amigos e identificar os vendedores.

A infiltração durou três meses. Os agentes descobriram que um dos traficantes escondia a droga dentro do carrinho de bebê de sua filha de 2 anos e fazia as entregas durante seus passeios com ela na orla de Copacabana. Um segundo traficante fazia ponto numa clínica veterinária da Barra da Tijuca (o dono tinha licença para importar um medicamento para cavalos que era misturado à droga). “Foi tudo filmado, nada disso teria sido conseguido sem a infiltração”, disse Marina. O momento mais tenso era quando os agentes iam à delegacia deixar o material gravado e seus relatórios. Se fossem seguidos, sua identidade seria revelada.

Embora eficiente, a infiltração é “uma técnica custosa”, de acordo com o juiz federal Sérgio Moro, da 2ª Vara Criminal de Curitiba. “Um agente infiltrado precisará de dinheiro, de acompanhamento psicológico”, diz. “A falta de uma previsão normativa, que defina com clareza a atuação do policial na infiltração, limita um pouco seu uso”, diz o delegado Roberto Troncon, diretor de combate ao crime organizado da Polícia Federal. A PF usou agentes infiltrados para prender cinco pessoas e recuperar R$ 12,5 milhões dos R$ 164,8 milhões roubados do Banco Central de Fortaleza, em 2005. Um agente disfarçado foi a Boa Viagem, a 216 quilômetros de Fortaleza, semanas após o furto. Aproximou-se de uma parente de um dos criminosos, Antônio Jussivan Alves dos Santos, o Alemão. Por seis meses, frequentou a casa da família, participou de churrascos, almoços e festas e recolheu detalhes do megafurto. Depois de entregar relatórios com dados de todos os suspeitos, o agente desapareceu da cidade antes da prisão do grupo.

O DEPOIMENTO DE UM INFILTRADO

”No Brasil, a ‘infiltração’ é chamada tecnicamente de ‘entrevista dissimulada’. Você se faz passar por alguém que não é. O seu trabalho não produz prova judicial válida e você não tem outra identidade. A gente apenas levanta os dados necessários para que a Justiça autorize as quebras de sigilo. Você não consegue sair quebrando sigilo de 200 pessoas assim, então é preciso que o alvo seja bem localizado. O trabalho começa com o estudo dos hábitos do grupo que vai ser identificado. A polícia levanta tudo: os lugares que eles frequentam, os hábitos, o linguajar. A gente faz uma espécie de laboratório. Como eu já surfava, fui escolhido para entrar nesse grupo de surfistas que traficava. Você passa dias, semanas nos mesmos lugares que eles, e um dia puxa a conversa. É importante parecer que você faz parte daquele lugar. Todos os dias eu chegava na delegacia às 6 horas da manhã, pegava o carro descaracterizado com uma prancha em cima e ia para a praia. Ficava lá, surfando, com os mesmos caras o tempo todo. Chega uma hora em que você não é mais um estranho no lugar.

Eu nunca tinha ido a uma rave, tive de aprender. Eles passaram a me convidar para festas, e não demorou muito para alguém me oferecer as drogas. Você não pode chegar pedindo, tem de esperar que uma hora alguém oferece. Eu negava, dizendo que tinha de participar de uma competição. Não usava nome falso porque você pode ser parado numa blitz e ter de mostrar o documento. Quando alguém pergunta onde você mora, geralmente você tem de dar um endereço de algum parente que more nas redondezas, para o caso de alguém querer ir até lá. Em geral, eles assumem que você é dali mesmo. Eu nunca tive conflito de achar que eles eram meus amigos. A distância dos mundos é imensa, e você sabe exatamente o que está fazendo ali e quem são eles.

Meu trabalho era identificar os traficantes que seriam alvo de uma investigação mais profunda, com grampos autorizados pela Justiça. A gente não tem esse glamour da polícia dos filmes, que tem uma casa falsa, documento falso, tudo. Você tem de ficar atento o tempo todo, mas isso acaba virando um padrão na sua cabeça. O policial infiltrado não pode ser uma pessoa muito conhecida, popular, que chega num lugar e todo mundo sabe quem ele é. Tem de ser discreto, o tempo todo. Minha família nunca soube desses trabalhos.”

Fonte: A Saga Policial / Revista Época /anjosguardioes

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